Muita gente tá querendo saber mais sobre essa tal de Quimbanda que tá estourando nas redes sociais. Desde que Mãe Michelly da Cigana então colocou seu Baphomet (esse vou deixar para outro post) no muro de sua casa lá no Sul e virou assunto até nos telejornais, a quimbandamania vem ganhando ainda mais força – Ah, o poder da mídia!
É claro que tudo isso é legítimo. A Quimbanda é uma religiosidade brasileira e, como tal, não poderia ser mais natural que nós – brasileiros – quiséssemos saber sobre ela! Maravilhoso.
Vou adiantar que se você quiser mesmo adentrar nos porões da história da Quimbanda, encontrará desafios brabos. Entretanto, acho que podemos fazer um resuminho interessante e apontar alguns livros e perfis que valem a pena serem acompanhados.
Em miúdos, a Quimbanda é a religiosidade brasileira que se ocupa essencialmente do culto de exu e de pombagira. Quando eu falo brasileira, digo que na certidão de nascimento dela tá escrito – brasileira. Por mais que um ou outro possa falar em Quimbanda africana, isso não existe. O que existe é o quimbanda africano, uma espécie de sacerdote e de curandeiro... Não precisa de muito para perceber que são coisas diferentes.
Um ponto importante: Quimbanda está intimamente ligada à Umbanda. Não são exatamente a mesma coisa, mas é impossível falar de Quimbanda sem mencionar a Umbanda, visto que é no sei Umbandista que a primeira nasce. Ainda, apesar de o termo fazer menção a uma religiosidade independente, ele também pode fazer menção ao culto de exu e de pombagira dentro da Umbanda – por exemplo, no caso das giras ou sessões de quimbanda, que ocorrem dentro do contexto Umbandista.
Em linhas gerais existem duas grandes correntes de Quimbanda: a primeira, do Sudeste brasileiro, nasce “oficialmente” pelos anos 1940-50 com o trabalho de escritores como Lourenço Braga e Aluizio Fontenelle - provavelmente, os escritos deles refletiam práticas que nasceram antes nos terreiros, mas aí entramos em um emaranhado histórico difícil de desenrolar – ainda, esta corrente é tocada, em sua formação, principalmente por umbandistas que, em geral, tocam a Quimbanda, de maneira independente da Umbanda, em segredo dentro de seus terreiros; a segunda corrente nasce pelos anos de 1960 no Sul do Brasil, em Porto Alegre, capitaneada por Mãe Ieda do Ogum – essa corrente se separa de maneira destacada da Umbanda logo de cara, formando uma religião pública e mais comunitária.
Dentro dessas duas correntes surgiram – ao longo do tempo – variedades ou vertentes distintas. Por exemplo, temos a Quimbanda Malei, a Quimbanda Congo, a Quimbanda Luciferiana, a Quimbanda Nagô, a Quimbanda de Raiz... Cada uma dessas vertentes vai levando a Quimbanda para um foco mais ao gosto do freguês. Na verdade, se pensarmos na essência da Quimbanda, o culto de exu e de pombagira, é natural que existam muitas vertentes. Afinal, se existem incontáveis exus e pombagiras, faz sentido que exista uma Quimbanda ligeiramente diferente a depender do exu ou pombagira de frente do sacerdote da casa, não é? Com isso, as Quimbandas diferentes vão ganhando vida e cores. Por isso, não podemos condenar a priori as diferenças entre as Quimbandas – o que não quer dizer que vale qualquer coisa – mas isso é outro papo...
Bateu aquela vontade de saber mais? Hora das recomendações.
Há três excelentes livros em língua inglesa, todos de autoria de Nicholaj de Mattos Frisvold: Exu and the Quimbanda of night and fire; Pomba-gira and the Quimbanda of Mbumba Nzila; e Seven crossroads of night.
Em português, sem dúvida os trabalhos mais sérios a falar da Quimbanda em geral são os do Diego de Oxóssi: Desvendando Exu, o senhor dos caminhos; e Os Reinos de Quimbanda e os Búzios de exu. Recomendo também que o sigam no Instagram: @diegodeoxossi.
Finalmente, se você quer conhecer mais sobre a Quimbanda, eu recomendo também meu Patreon, espaço no qual eu posto vídeos e textos falando de Quimbanda, Umbanda, Vodou e outras religiosidades afro-americanas e africanas, clique em PATREON no cabeçalho do site.
Recentemente, fui questionado acerca da existência dos bonecos Vodou. Eu sempre afirmo que eles não fazem parte da prática corriqueira. Entretanto, é evidente que alguns praticantes, na contemporaneidade, utilizam tal prática, como mostra um curioso artigo de radiologia forense no qual uma coleção desses “bonecos” foi recolhida do cemitério de Porto-Príncipe e submetida a exames de raios-X[1]. A questão que fica então é: se há haitianos fazendo bonecos Vodou, então eles não são coisas legítimas da prática? Essa pergunta é complexa e repleta de camadas. Eu não sei se conseguirei viajar por todas essas camadas de maneira competente, mas sigamos em frente.
Para que nossa conversa aqui não fique no nível de “apostilas de internet”, eu me basearei principalmente em artigos das estudiosas Sara A. Rich e Natalie Armitage [2]. Preciso agradecer imensamente a Professora Doutora e Manbo Kyrah Malika Daniels, que me apontou os artigos supracitados.
Como Armitage coloca muito bem, a noção de que semelhante afeta semelhante está espalhada pelas práticas mágicas e religiosas ao redor do tempo e do espaço. Vemos o uso de figuras humanas em rituais mágicos no mundo antigo e também no período contemporâneo. Há vasta evidência do uso de “magia figurativa” ou de magia envolvendo o uso de figuras humanas na Europa, coisa que no período moderno começou a ser categorizada como “bruxaria”.
Passando a discussão para a África, temos que levar em consideração o que Armitage nos lembra – “Yet unlike in Europe, where magic was superstitious, against God’s will and, at its worst, positioned in the realms of the Satanic, magical practice in many West African cultures at the time was situated quite differently within their society”[3]. Ou seja, para muitas culturas africanas, a magia era algo bem diferente do que entendiam as sociedades europeias. De fato, neste período, a separação entre vida cotidiana e magia para muitas destas sociedades é difícil de ser avistada.
Armitage também nos lembra dos Fetiches, termo derivado de Feitiço, e do Fetichismo, que De Brosses vai conectar com diversas práticas mágicas e religiosas africanas. O fetiche seria um objeto fabricado, supostamente imbuído de um poder. Na visão ocidental, algo falso, próximo da idolatria, como a pesquisadora pontua com precisão.
Eu não desejo entrar em uma discussão muito complexa aqui acerca de fetiches e de magia e de nkisis, mas eu acho que já consegui destacar o seguinte: qualquer olhar europeu para as práticas sociais, mágicas e religiosas africanas, no início do período moderno, estava carregado de viés. Onde enxergavam bruxaria e idolatria, havia práticas espirituais legítimas e distantes das noções que lhes foram imputadas.
Uma curiosidade acerca de alguns nkisi – no caso, um objeto contendo poder [4] - é que estes eram figuras humanas e muitas vezes eram perfurados por pregos e lâminas – uma imagética, de fato, muito similar à do infame “Boneco Vodou”. Vejam o exemplo, retirado do artigo de Armitage. Entretanto, estes pregos e lâminas, imediatamente vistos pelas mentes ocidentais como objetos envolvidos em um ato de maldição ou de malefica, eram, muitas vezes, oferendas ou até agradecimentos. Em muitos casos eram também uma maneira de ativar o poder do nkisi, de causar desconforto ou dor no espírito daquele nkisi, para que ele fosse instigado a agir[5]. Aliás, é possível até que a ideia de pregar os nkisi tenha sido derivada de práticas mágicas europeias que chegaram à África.
A conclusão a qual Armitage chega e com a qual eu concordo é que, muito provavelmente, pelas diferenças claras de função, os nkisi não foram as inspirações para os “bonecos Vodou”, mas sim as práticas mágicas figurativas europeias.
Vamos analisar o que diz Sara A. Rich em seu artigo, para que então, possamos cozinhar uma conclusão mais robusta. Rich começa com uma informação valiosa – “Bonecas Voodoo não existem”. Logo depois ela nos revela um dado muito interessante – durante a ocupação americana do Haiti houve a exportação gigantesca de bonecas de castanha de caju do Haiti aos EUA. Estas eram comercializadas como bonecas exóticas. Ocorreu que, por razões de toxicidade biológica, tais bonecas se provaram letais, pois partes delas eram engolidas por crianças que desenvolviam uma intoxicação severa e iam ao óbito. Isso forçou o governo americano a liberar um aviso assustador, banindo e condenando a comercialização de bonecas haitianas. Não lhes parece o belo começo para uma “lenda urbana”?
De “bonecas haitianas” para “bonecas Vodou” parece um salto pequeno. De intoxicação alimentar para “magia negra”, outro bem pequenino também. Duvidam? Os mais velhos se lembrarão da “lenda urbana” brasileira do boneco do Fofão. Os que forem mais novos poderão procurar no Google e tirar suas próprias conclusões.
Ora, mas então, Eduardo, você está dizendo mesmo que no Vodou nunca são feitos bonecos com forma humanizada? Não estou afirmando isso. Eles podem ser feitos – embora eu nunca tenha visto na prática[6]-, mas quando o são, são majoritariamente feitos com o propósito de cura, relações amorosas ou de comunicação com os mortos, como destaca Rich citando a famosa Karen McCarthy Brown. E são esses os bonecos vistos provavelmente no cemitério de Porto-Príncipe, no artigo que citei no início deste texto. Pois, no Vodou, ao contrário da associação que fazemos no ocidente, o cemitério é um lugar mágico e de curas! Algo encontrado no cemitério não está necessariamente ligado ao mal. Algo que nós, como um país repleto de práticas com sabores africanos, deveríamos saber muito bem, mas parece que sempre traímos nosso espírito pelo espírito do sensacionalismo...
Então, com base nos artigos de Armitage e de Rich e da vivência e da conversa com inúmeros praticantes ao redor do mundo, eu volto a afirmar – Bonecos Vodou para espetar com alfinetes para fazer mal aos outros não são uma prática corriqueira no serviço aos Lwas e nem mesmo no universo mágico-religioso haitiano.
Há haitianos fazendo isso? Sim! Há “feiticeiros”, há aproveitadores e há caluniadores em qualquer lugar e em qualquer espiritualidade. Assim como há aqueles que, influenciados, adotam práticas que não eram comuns ou espalhadas. Há também aqueles que adoram fazer um exame retroativo das coisas, como dos nkisi, e jogarem sobre elas toda uma bagagem de viés causada pela alteridade e pela incapacidade de enxergá-la com crítica. Se há um berço provável para a história do “boneco sendo espetado por alfinetes” para causar mal, este berço é a mente do ocidental.
Não podemos nos esquecer de que a sociedade ocidental é especialista em exportar e colonizar. Logo, não é surpreendente que esse ponto de vista deturpado sobre o Vodou tenha chegado ao próprio Vodou e tenha sido abraçado por alguns haitianos e praticantes ao redor do planeta.
Para me fazer perfeitamente claro – não é que no Vodou existam apenas práticas de amor, carinho e que não exista um lado bélico e que certas práticas com bonecos possam ser utilizadas para fins combativos. A questão é outra: A ideia do boneco espetado para machucar alguém não é o que o Vodou faz. O Vodou não é sobre isso.
[1] Augias et al. Haitian Voodoo Dolls revealed by X-ray: from radiology to medical anthropology. Journal of Forensic Radiology and Imaging. Volume 3, Número 4. Páginas 221-225. [2] Sara A. Rich. “The Face of ‘Lafwa’: Vodou & Ancient Figurines Defy Human Destiny.” Journal of Haitian Studies (2009): 262-278 & Armitage, Natalie (2015). "European and African Figural Ritual Magic: The Beginnings of the Voodoo Doll Myth". In Ceri Houlbrook; Natalie Armitage (eds.). The Materiality of Magic: An Artifactual Investigation into Ritual Practices and Popular Beliefs. Oxford: Oxbow. pp. 85–101. [3] Entretanto, diferentemente da Europa, na qual a magia era supersticiosa, contra a vontade de Deus e, no pior dos casos, pertencente aos reinos do Satânico, a prática mágica em muitas culturas da África Ocidental ,naquela época, estava situada bem diferentemente dentro da sociedade”. [4] O conceito de nkisi é intimamente ligado ao de algo que contenha poder. [5] Armtige também nos lembra de que o uso de pregos começa com a influência do imaginário de Cristo na cruz. [6] E aqui eu preciso destacar que muitas pessoas confundem práticas típicas do Hoodo e do Vodou de Nova Orleães com prática do Vodou haitiano, quando estes três sistemas são diferentes. Sugiro a leitura do livro de Diamantino Trindade e Sebastién de La Croix, lançado pela Arole – “Vodu, Voodoo e Hoodoo: a Magia do Caribe e o Império de Marie Laveau”